sexta-feira, setembro 15, 2006

Vida aos pedaços (conto)



Era um crepúsculo chuvoso de segunda-feira, no mês de setembro de 2023.
Sentado em frente à tela multimídia assistindo televisão, pés ao ar, Guilherme revelava em lampejos esparsos risos silenciosos, exatamente da maneira como o faz somente nos momentos em que se encontra sozinho, e há que se dizer, na maioria das vezes ele se encontra sozinho.
No canal de televisão passa um programa de entrevistas que está arrebentando recordes de audiência. Os entrevistados, pessoas comuns, relatam experiências quaisquer de suas vidas anônimas, subitamente galvanizadas de renome fugaz. São entrevistas que duram dez minutos, e dezenas de pessoas são entrevistadas diariamente.
A convidada de hoje chama-se Fernanda, que, timidamente, inicia o depoimento relatando trivialidades de sua vida. A entrevistadora, com seu “sorriso permanente” e destilando um certo embaraço, pede à garota algo “mais interessante”, segundo suas palavras.
A timidez perde espaço para a empolgação e as palavras parecem mais leves em sua boca, e no intuito de atender ao pedido da entrevistadora, Fernanda relata agora suas viagens ao redor do mundo. Enquanto fala, seus lábios formam um longo e sôfrego sorriso, claramente rejubilando-se com aquele aguardado momento.
Eis que surgem os comerciais obrigatórios. E no menu interativo - perfil de interesses de Guilherme: informática, eletrônicos, viagens virtuais, meios de tranporte e mulheres sensuais: “Viaje para onde quiser, sem sair de casa. Visite as cordilheiras do Himalaia, as pirâmides do Egito nos tempos dos faraós. Presencie, às margens do Ipiranga, a proclamação da república”.
Guilherme havia acabado de encerrar a última reunião do dia, via conferência multimídia. É funcionário de uma empresa fabricante de sistemas biométricos para identificação de íris, utilizados em portarias, portões eletrônicos, centrais multimídias, automóveis, contas bancárias. Tecnologia útil para toda e qualquer personalização de acesso, seja ele físico ou virtual.
Lá fora, as ruas sem pedestres, sem carros. Nelas sobraram apenas os mentecaptos, loucos, vadias, vadios, párias, gatos estropiados, aventurando-se por entre a cidade sem vida, excluídos do convívio digital.
Aciona pelo comando de voz o noticiário e logo aparecem em sua tela corpos de crianças mutilados por um psicopata qualquer. Guilherme as observa com olhos de familiaridade. Em seguida, as últimas notícias do torneio de tênis de Madri, os resultados dos jogos de futebol de todo o mundo, as atrações do final de semana em Nova York.
Os peixes no aquário nadam freneticamente numa busca incessante pelas dimensões mais distantes do aquário. As bolhas de ar emergem na superfície e se dissolvem em súbitas explosões como num manifesto de emoções afogadas.
No céu estrelado, estrelas cadentes entregam-se resignadamente aos seus destinos e constróem uma paisagem essencial. Aqui na terra, destinos humanos cruzam-se e comunicam suas solidões mudas.
Guilherme agora joga videogame e vive ali uma vida inteira. Decide o destino frio daqueles personagens, inúmeros personagens entre tramas frenéticas e despedaçadas. Entrega suas emoções ao controle do videogame: morre, atira, mata, vence, explode, perde, vive. Decisões a cada milésimo de segundo, em aventuras por entre os mais inóspitos lugares e tempos variados. Entre as ruas de Londres, entre o subúrbio da Colômbia, entre as modernas ruas de Pequim.
O botão desliga aquela vida virtual e o repouso lhe chama de algum lugar, mas Guilherme não consegue dormir. Liga a tela e confere a imensa lista de amigos, alguns estão ainda acordados, mas não se sente à vontade para lhes falar de seus tormentos. Sente-os distantes, muito distantes, como se as distâncias tivessem aumentado estupidamente.
Liga a televisão novamente, mas nenhum canal lhe chama a atenção. Como num déjà vu total, tem a sensação de que já havia vivido tudo o que lhe afigura diante dos olhos, condenado a ver as mesmas coisas infinitamente, e desta vez, Guilherme sente medo. Medo do desencantamento, da extinção da razão de existir. Como se alguém pudesse encontrar alguma em absoluto.


FIM

5 comentários:

Anônimo disse...

A realidade realmente assusta…. Porque na realidade, estamos sós... A única esperança é a fé, mas isso é algo que vimos perdemos há muito tempo...

raquel disse...

Sera que toda essa ambientaçao futuristica eh realmente necessaria se as angustias do personagens permanecem como nos tempos de hoje? Voce pensou nisso?

Mais um... disse...

talvez Raquel, talvez...

Anônimo disse...

Talvez essa ambientação futurista tenha exatamente essa função, mostrar que nossas angustias são atemporais, sempre foram e sempre serão as mesmas, só muda-se o cenario, boa Barba!

Anônimo disse...

Parece que o vazio de nossas vidas foi amplificado pelo tempo; aliás, estamos no caminho. Sinto relação com o filme 2023, cheio de vazios e angústias.