quinta-feira, setembro 28, 2006

Para comer e conversar... não basta só começar!

“Comer bem na companhia de amigos inteligentes é o que há de mais civilizado; cria uma aproximação que torna a vida mais agradável, pelo aprendizado e pelo humor, e em que jamais falta respeito à individualidade. A arte da conversação tem se deteriorado, devido à pressa e ao narcisismo dos tempos. Ontem, felizmente, pude presenciá-la durante quase quatro horas, jantando no Allez, Allez!, restaurante merecidamente considerado a revelação do ano pela "Vejinha". Se eu estivesse sozinho e chateado, os ótimos pratos já seriam motivo para despachar a possibilidade de maus eflúvios mentais. Mas, como nos filmes de Woody Allen e livros de Louis Begley, os prazeres do paladar dão a senha para uma química entre corpo e palavra, para uma forma especial de convívio - aquela que não passa nem pela submissão ao coletivo nem pela agressão do egoísmo. Restaurar é preciso.” Texto extraído do blog do Daniel Piza, cujo link se encontra nessa página.

Não é de hoje que encontro com pessoas que adoram conversar, mas adoram tanto, que a conversa logo se transforma em um monólogo narcisista. Aliás, não se engane, são seletivos com sua platéia; não é para qualquer um que eles desejam vomitar sua verborragia... há os escolhidos para presenciar o espetáculo.
Concordo com o título do texto do Piza: “Comer e conversar, uma mesma arte”, e para aqueles que se esqueceram que conversar tem uma dinâmica de troca, em que um fala, outro ouve, outro fala, um ouve, fala, fala, outro ouve, ouve, outro fala, um ouve, e fala, lembrar-lhes-ei que a arte de comer também subentende “troca” e não um espetáculo para demonstrar o quanto “ele cozinha bem”, “entende de vinho” ou “sabe como ninguém apreciar uma boa comida".
O pior é que o narcisista patológico (que me perdoem os psicólogos, estou eu também metido a diagnosticar patologias psicológicas) acaba por não conhecer o outro, pois ele não ouve a opinião dos outros e não conhece o paladar dos outros, pois quando o outro ia começar a falar, as cortinas se fecharam.
E não é só isso. A ânsia de ser o centro das atenções, de ser invejado para existir e suas variações, revela uma angústia que é característica de uma sociedade desumana, na qual as fraquezas são evitadas até a última instância, ou ainda, são consideradas somente em relação ao outro.

A frase também citada no referido blog: “livre das úlceras que vêm da preocupação com uma dieta balanceada”, de A.J. Liebling, também é pertinente para a questão, já que hoje presenciamos um verdadeiro império da vida saudável. É a típica frase que eu gostaria de ter escrito.

quarta-feira, setembro 27, 2006

"Otimistas são pessimistas mal informados..."

(como diz uma brincadeira do leste europeu, e que ao menos é uma alternativa às frasinhas "bunitinhas" e politicamente corretas que impregnaram a internet)

quinta-feira, setembro 21, 2006

A Trepada da Cicarelli

Que grande alvoroço a divulgação do célebre vídeo promoveu.
Antes de mais nada, gostaria de parabenizar o talentoso paparazzi, por sua espetacular perícia nas filmagens, dignas de uma mão talentosa, a edição felicíssima que transformou o vídeo numa novela apimentadíssima de se fazer inveja a muitos dramaturgos por aí.
Acalmem-se, vamos ao debate:
Duas pessoas transando numa praia?
Não deve ser a primeira vez que duas pessoas transam numa praia e, provavelmente, não será a última.
E o extraordinário interesse pela trepada marinada?
Lá dizem uns: Mas são celebridades!
Concordo. Desde sempre que celebridades são celebridades justamente pelo interesse que despertam em nós, pobres mortais anônimos.
E o espetacular alcance que as imagens da célebre trepada correram mundo afora, em poucos minutos?
A era da informação, que eu chamaria de informatização, é caracterizada justamente por tal velocidades de informação.
Mas então, qual o problema com a trepada da Cica? Perguntam outros cá.
O problema é a inveja desproporcional de milhares de homens, que já não sentem tesão nas anônimas trepadas com suas parceiras anônimas. Depois do “penso, logo existo” e do “produzo, logo existo”, apresento-lhes o: “sou visto, logo existo”, ou sua variação: “causo inveja, logo existo”.
Que inveja!

sexta-feira, setembro 15, 2006

Vida aos pedaços (conto)



Era um crepúsculo chuvoso de segunda-feira, no mês de setembro de 2023.
Sentado em frente à tela multimídia assistindo televisão, pés ao ar, Guilherme revelava em lampejos esparsos risos silenciosos, exatamente da maneira como o faz somente nos momentos em que se encontra sozinho, e há que se dizer, na maioria das vezes ele se encontra sozinho.
No canal de televisão passa um programa de entrevistas que está arrebentando recordes de audiência. Os entrevistados, pessoas comuns, relatam experiências quaisquer de suas vidas anônimas, subitamente galvanizadas de renome fugaz. São entrevistas que duram dez minutos, e dezenas de pessoas são entrevistadas diariamente.
A convidada de hoje chama-se Fernanda, que, timidamente, inicia o depoimento relatando trivialidades de sua vida. A entrevistadora, com seu “sorriso permanente” e destilando um certo embaraço, pede à garota algo “mais interessante”, segundo suas palavras.
A timidez perde espaço para a empolgação e as palavras parecem mais leves em sua boca, e no intuito de atender ao pedido da entrevistadora, Fernanda relata agora suas viagens ao redor do mundo. Enquanto fala, seus lábios formam um longo e sôfrego sorriso, claramente rejubilando-se com aquele aguardado momento.
Eis que surgem os comerciais obrigatórios. E no menu interativo - perfil de interesses de Guilherme: informática, eletrônicos, viagens virtuais, meios de tranporte e mulheres sensuais: “Viaje para onde quiser, sem sair de casa. Visite as cordilheiras do Himalaia, as pirâmides do Egito nos tempos dos faraós. Presencie, às margens do Ipiranga, a proclamação da república”.
Guilherme havia acabado de encerrar a última reunião do dia, via conferência multimídia. É funcionário de uma empresa fabricante de sistemas biométricos para identificação de íris, utilizados em portarias, portões eletrônicos, centrais multimídias, automóveis, contas bancárias. Tecnologia útil para toda e qualquer personalização de acesso, seja ele físico ou virtual.
Lá fora, as ruas sem pedestres, sem carros. Nelas sobraram apenas os mentecaptos, loucos, vadias, vadios, párias, gatos estropiados, aventurando-se por entre a cidade sem vida, excluídos do convívio digital.
Aciona pelo comando de voz o noticiário e logo aparecem em sua tela corpos de crianças mutilados por um psicopata qualquer. Guilherme as observa com olhos de familiaridade. Em seguida, as últimas notícias do torneio de tênis de Madri, os resultados dos jogos de futebol de todo o mundo, as atrações do final de semana em Nova York.
Os peixes no aquário nadam freneticamente numa busca incessante pelas dimensões mais distantes do aquário. As bolhas de ar emergem na superfície e se dissolvem em súbitas explosões como num manifesto de emoções afogadas.
No céu estrelado, estrelas cadentes entregam-se resignadamente aos seus destinos e constróem uma paisagem essencial. Aqui na terra, destinos humanos cruzam-se e comunicam suas solidões mudas.
Guilherme agora joga videogame e vive ali uma vida inteira. Decide o destino frio daqueles personagens, inúmeros personagens entre tramas frenéticas e despedaçadas. Entrega suas emoções ao controle do videogame: morre, atira, mata, vence, explode, perde, vive. Decisões a cada milésimo de segundo, em aventuras por entre os mais inóspitos lugares e tempos variados. Entre as ruas de Londres, entre o subúrbio da Colômbia, entre as modernas ruas de Pequim.
O botão desliga aquela vida virtual e o repouso lhe chama de algum lugar, mas Guilherme não consegue dormir. Liga a tela e confere a imensa lista de amigos, alguns estão ainda acordados, mas não se sente à vontade para lhes falar de seus tormentos. Sente-os distantes, muito distantes, como se as distâncias tivessem aumentado estupidamente.
Liga a televisão novamente, mas nenhum canal lhe chama a atenção. Como num déjà vu total, tem a sensação de que já havia vivido tudo o que lhe afigura diante dos olhos, condenado a ver as mesmas coisas infinitamente, e desta vez, Guilherme sente medo. Medo do desencantamento, da extinção da razão de existir. Como se alguém pudesse encontrar alguma em absoluto.


FIM

sexta-feira, setembro 08, 2006

Impressões àqueles que se impressionam (divagações)

Hoje venta frio lá fora.

Queria lhes contar de uma febre. Não uma febre física, mas uma febre que atordoa a percepção, e nos faz perceber tudo diferente, como quando estamos mergulhados em uma paixão avassaladora, ou quando fomos arrebatados por uma forte emoção, tão alegre ou tão trágica que nem sabemos ao certo como reagir.
No conforto do sofá, num dia em que, repentinamente, o sol quente e o calor deram lugar ao vento frio, já tarde da noite, após ter assistido no cinema (e isso muito importa para um filme de visual tão alucinante) Miami Vice.
Trata-se de cinema de temática e orçamento da grande indústria, absolutamente, com seus astros do mainstream, distribuição maciça, e roupagem de blockbuster. Não há dúvida. Mas há algo nesse filme que me manchou a percepção das coisas, como se minha visão estivesse submetida a um filtro interior, que ritmasse meu fluxo de consciência de forma incomum. Tudo isso vem fortalecer a crença de que a arte é algo que nos atinge em nossa essência de seres humanos civilizados e embebidos culturalmente.
Vejam bem; não me interessam thrillers com suas tomadas espetaculares de carrões em alta velocidade e suas cenas exageradamente vertiginosas de ação. Embora Miami Vice tenha esses ingredientes, seus personagens sofrem e expressam emoções que nos amparam da dor existencial. Talvez nos identificamos com suas dores diante do absurdo da existência (que Camus tão bem expressou). Nos identificamos com algo que nos fere, é a dor dele que nos dói, mas que afinal nos revela a beleza e nos faz sorrir muito intimamente. Aquilo que só uma febre como a da experiência artística nos faz experimentar...